sábado, 17 de outubro de 2020




Eles

Talvez na cidade seja possível viver sem conhecer os encantes. Na floresta é preciso. O cabôco só escapa se souber andar contra o vento, vestir a roupa do avesso, assuntar o barulho na mata e olhar bem direitinho o rastro que o invisível deixa no ar. Toda família deve de ter ao menos um que conheça essas coisas, o procedimento da proteção. E não é só pra se garantir e defender os inocentes daqueles revanches que ferem a carne e fazem o corpo tombar no varadouro, no garapé, no aceiro do roçado e dali ir pro fundo de uma rede, não, que assim como eles -os encantes- a gente também não é só a carne e o osso da matéria (na verdade, isso é o que somos de menos, sendo a maior parte da família do sonho). E se ficar panema e não achar mais nem uma imbiara pra dar de comer à família? E se ficar jururu, sem vontade nem de comer? E se ficar rodando dentro da mata, perdido o rumo e o caminho de casa? O procedimento é pra tudo: pra acordar, pra dormir, pra entrar na água, pra sair no sereno, pra pegar uma folha ou a casca de um pau, pra tudo, até pra ir na sintina, que em tudo hai perigo e um jeito certo de se desviar dele. Mas escapar ainda não é viver. Tem gente que não sabe disso e passa uma vida à toa, pode-se dizer desencantado, vendo só a parte bruta do mundo. Botando atenção e tendo gosto, dá pra fazer amizade com eles, os encantes, e receber todo tipo de coisa boa que eles guardam nos escondidos de lá. Tem gente que recebe visita, que ganha presente: remédio, comida, cantiga, conselho… E tem gente que até vai lá, entra dentro daquele mundo encantado mesmo, conhece a casa e a família deles, brinca e dança nas festas que eles fazem, vai e volta quando quer. Mas se tem gente que até namora, se casa e forma família por lá! Mas aí não é mais só procedimento, é compromisso mesmo e bem sério, de vida e de eterno. E a primeira coisa é dizer que não sabe, que nunca nem viu. Agora, tirar retrato deles… aí só com muito tempo e confiança firme. Um desenho que seja, uma pintura, assim do vera mesmo e não por ouvir falar, isso é bonito de se ver e muito, muito difícil. Porque aí o procedimento já é de lá, deles, que não podem se arriscar a mostrar a cara pra qualquer um e pra todo mundo. Tem que seguir esses procedimentos bem direitinho, a mão obedecendo a instrução deles do maior traço ao menor. E no final, não é que que seja assim como um espelho, é como eles querem que apareça naquela hora, daquela vez. É um povo caprichoso, tem que respeitar. E aí quando ficar bem velho, soprando a fumaça dum porronca na varanda da casa, a pessoa pode contar as histórias e dar os detalhes da vida daqueles seres e daqueles mundos. Quando ninguém acreditar, quando pensarem que o vovô tá ficando brôco, que é tudo inventado. Aí pode contar mesmo. E só quem tiver visto, um dia, um desenho, vai poder conferir se dá umas parença.
Toinho Alves - Jornalista e Escritor





O Chamado do Rio Amônia

OST, 90 X 120 cm, 2019

A Mãe d’Água que acendia as estrelas do Alto Juruá

OST, 90mX 120 cm, 2020

A Eterna Gula do Desmatamento

OST, 90 X 120 cm, 2019


O Jaburu que sabia a hora exata em que a Samaúma paria a Piracema

OST, 90 X 120 cm, 2020 

A Mudança do Mapinguari do Xapuri para a Foz do Breu na Noite do Grande Temporal

OST, 90 X 120 cm, 2020

Na Correnteza do Rio Juruá

OST, 90 X 120 cm, 2018

A derradeira Samaúma

OST, 90 X 120 cm, 2020

E vai chegando a hora do Angelus no Purus

OST, 90 X 120 cm, 2020

domingo, 21 de maio de 2017

ENCANTES AMAZÔNICOS

ENCANTES AMAZÔNICOS

Faça uma conta. Junte todos os seres humanos, os bichos, as plantas e
todo o resto que você conhece ou imagina que exista. Junte tudo, do mais
graúdo ao mais miúdo. Junte a estrela de luz ofuscante com o mais
absoluto breu do céu. Misture o frio com o calor, a alegria com a dor. Junte
tudo, tudo, tudo. Juntou? Você somou muitos milhares de seres, objetos e
até pensamentos, desejos e medos. E o que restou? Apenas uma coisa: o
todo.
Fernando França tinha medo das histórias que ouvia no estado do Acre,
no extremo oeste da Amazônia brasileira, quando era criança. Os mais
velhos, que viveram na floresta, contavam muitas histórias. Naquele
mundo os bichos falam e punem, protegem e até aconselham os homens.
Entidades ajudam na caça e ensinam o caminho de volta para casa àqueles
que se perdem no mato. Fernando tinha medo. Mas gostava. Era
apaixonado por estas histórias. No fundo, sabia que o que via e ouvia era
só a aparência das coisas. Haveria de ter algo mais profundo.
Anos se passaram. Fernando França tomou gosto pelas artes e,
especialmente pelo desenho e a pintura. Mudou-se para Fortaleza, no
litoral do nordeste brasileiro. Viajou o mundo com sua arte, mas nunca
perdeu o contato com o Acre. Mais do que isso, nunca deixou de ter no
Acre a sua bússola. Sempre volta e se reabastece. É no Acre que recarrega
as baterias para cada nova fase de suas obras.
Desta vez, Fernando mergulhou nos mitos da criação. E lá se reencontrou
com as intrigantes histórias da infância. Enlouqueceu com elas. Seus
desenhos perderam o chão, literalmente. As imagens flutuam. Todos se
misturam e, curiosamente, quase todas as imagens sempre formam um
círculo. Tudo dialoga e se confunde. Bicho, gente e natureza. Tudo junto e
misturado, como se fala no Acre. Não é à toa. Tudo é um. Tudo é muito e
pouco ao mesmo tempo. Ninguém é mais, ninguém é menos. Tudo é falho
e perfeito ao mesmo tempo.
“Encantes Amazônicos”. Ele mergulhou na cosmovisão dos povos
indígenas do Acre - alguns nem mesmo tiveram contato com o mundo
ocidental, em pleno século XXI. Foi uma viagem nas representações de
vários povos para explicar a origem da vida e a razão de existir. Poucos de
nós se preocupam com o infinito para trás e o infinito para frente do que
somos. Vivemos furiosamente o presente, com gana, egoísmo e olho no
relógio, para arrancarmos mais e mais de cada segundo presente, como se
mais nada existisse senão o eu solitário.
Fernando desenhou e pintou o eu profundo. Todos estão dentro de nós.
Quem gostamos e quem não gostamos. As coisas e a natureza também são
parte de nós. Para Fernando, um mundo de respeito e amor por tudo e
por todos é possível. Por isso se detém nos detalhes e, sem saber como
desenhar o infinito e a ausência de fronteiras entre o preto e o branco, o
feio e o bonito, ficou horas e horas riscando, com bico de pena e nanquim,
minúsculas linhas entrelaçadas e, fazendo uso da aquarela, diluiu e
misturou cores sem se preocupar com bordas, com o chão, com os limites
de qualquer coisa.
Binho Marques

(ex-governador do Acre, historiador e amigo de infância)

                                    “A Anta que sonhava em ser um Jaburu”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                                               “O perfume da Vitória Régia"
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29.7 X 42 cm, 2016

                                                   “O Guaraná”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016
                           “A peleja do Bôto com a Cobra Grande por causa do Pirarucú
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                       “Aqui tem Gogó de Sola e Cobra Grande”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel. 29.7 X 42 cm, 2016

                                       “Um Mapinguari no Caminho”
                                              Nanquim e aquarela s/papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                                   “A  Anta se confessando para a Mãe d’Água”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29.7 X 42 cm, 2016

                                                      “A Jibóia enredando para o Curupira”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                                                        “A Conversa”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                      “Um Mapinguari no Caminho”
                                               Nanquim e aquarela s/papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                                  “O Encontro" 
                                               Nanquim e aquarela s/ papel. 29.7 X 42 cm, 2016

                                                   “A Dança do Ashaninka com a Suçuarana”
                                              Nanquim e aquarela s/ papel, 29,7 X 42 cm, 2016

                                            “O Seringueiro Encantado”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                                  “O Ciúme da Mãe d’Água”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2006

                                              “A Anta que Carregava as Histórias da Colocação”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X41 cm, 2016

                                                       “O Uirapuru Cantando a Cobra Grande”
                                                Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                                  “A História de Yube – 1”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                                     “A História de Yube – 2”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                                 “A História de Yube – 3”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                            “Lá Pelas Bandas do Antimary
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                               “A Cobra Grande que Morava Debaixo da Igreja”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                                                               “ Miração
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                             “O Pirarucu que carregou a Macaxeira para a Lua”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                        “Dizem que a Piracema foi obra de um Bôto apaixonado”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                                            “O Dia em que a Mãe d’Água despertou a Pororoca”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2016

                           “De quando a Anta fisgou a Mãe d’Água lá pela Colocação Ôco do Mundo”
                                                Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2017

                                             “O Jacaré que ofereceu o Céu para a Vitória-Régia"
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2017

“De como o seringueiro Hélio Melo escapou do Mapinguarí do Antimary tocando sua Rabeca para a                                                  Samaúma antes do temporal”
                                               Nanquim e aquarela s/ papel, 32 X 41 cm, 2017

domingo, 23 de outubro de 2016

KALUDOSCÓPIO




























KALUDOSCÓPIO
(A Musa na Contemporaneidade)

Para realizar a série de obras ora apresentada, tomamos como fonte inspiradora a mitologia grega. O mito pode ser entendido como uma narrativa ou sistema simbólico que procura explicar o homem e o mundo. Jung, por sua vez, o apresenta como uma conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo - sendo este inconsciente coletivo compreendido como a herança das vivências das gerações anteriores, à medida que expressaria a identidade de todos os homens, independentemente da época e do lugar onde tenham vivido. Nesse sentido, é que ressaltamos o caráter atual de nossa abordagem, uma vez que os mitos são reelaborados e atualizados, e passamos a imprimir marcas da contemporaneidade aos arquétipos.
Primeiramente, partimos das narrativas referentes às musas, entidades mitológicas a quem se atribuíam a capacidade de inspirar a criação artística. Eram nove as musas inspiradoras: Terpsícore (dança), Erato (poesia lírica), Euterpe (música), Polímnia (música sacra), Melpômene (tragédia), Tália (comédia), Calíope (Eloquência), Clio (História) e Urânia (Astronomia).
Com o tempo, o significado da palavra tornou-se mais abrangente e passou a designar, figurativamente, a mulher amada ou aquela que traz inspiração para diversas formas de expressão cultural.
Levando em conta essa abrangência, elegemos uma única modelo para representar o papel de musa. Elevamos, em nossa série, a quantidade original das musas para vinte e sete, uma vez que a imaginamos representada em três perspectivas diferentes: uma do pintor, que idealiza e recria sua musa no  mundo  da pintura, outra da própria musa/modelo, uma vez assume, sugere e interpreta diversos estados e entidades mitológicas diferentes, e outra do espectador, que a partir de seu repertório de conhecimento reinterpreta as representações pictóricas.
Entre as vinte e sete pinturas, a musa também assume o lugar de outras figuras mitológicas de grande força  simbólica, como por exemplo: Medusa, Ariadne, Cassandra, Perséfone, e uma Bacante. Nas demais, sendo uma musa da contemporaneidade, que sofre, inclusive, de enxaqueca, demonstra hábitos banais do cotidiano, como, por exemplo, o uso do celular e do fio dental. Por fim, ela deixa revelar diferentes facetas arquetípicas em que se apresentam o jocoso, o sofrimento, o lúdico, a felicidade, a sensualidade, a vaidade, o desespero, a indiferença,  e o misticismo, entre outras.
Outra preocupação de nossa parte referente à realização dessa obra tem a ver com a intenção de buscar novas possibilidades interpretativas e significativas para a arte de retratar, uma vez que ela tem retornado com grande força no cenário contemporâneo.
Escolhemos o preto e branco com a intenção de ressaltar, no plano pictórico, o caráter dramático da obra e, no plano simbólico, a infinita peleja do artista em busca de impor luz/ordem ao caos através da linguagem da Arte.
Dados técnicos
Os retratos foram executados em Óleo s/ tela, com dimensões de 60 X  60 cm, entre 2014 e 2015. Os 27 retratos são indissociáveis, e compõem, na  verdade, um único painel.