Eles
Talvez na cidade seja possível viver sem conhecer os encantes. Na floresta é preciso. O cabôco só escapa se
souber andar contra o vento, vestir a roupa do avesso, assuntar o barulho na mata e olhar bem direitinho o rastro
que o invisível deixa no ar. Toda família deve de ter ao menos um que conheça essas coisas, o procedimento da
proteção. E não é só pra se garantir e defender os inocentes daqueles revanches que ferem a carne e fazem o
corpo tombar no varadouro, no garapé, no aceiro do roçado e dali ir pro fundo de uma rede, não, que assim como
eles -os encantes- a gente também não é só a carne e o osso da matéria (na verdade, isso é o que somos de
menos, sendo a maior parte da família do sonho). E se ficar panema e não achar mais nem uma imbiara pra dar
de comer à família? E se ficar jururu, sem vontade nem de comer? E se ficar rodando dentro da mata, perdido o
rumo e o caminho de casa? O procedimento é pra tudo: pra acordar, pra dormir, pra entrar na água, pra sair no
sereno, pra pegar uma folha ou a casca de um pau, pra tudo, até pra ir na sintina, que em tudo hai perigo e um
jeito certo de se desviar dele.
Mas escapar ainda não é viver. Tem gente que não sabe disso e passa uma vida à toa, pode-se dizer desencantado,
vendo só a parte bruta do mundo. Botando atenção e tendo gosto, dá pra fazer amizade com eles, os encantes, e
receber todo tipo de coisa boa que eles guardam nos escondidos de lá. Tem gente que recebe visita, que ganha
presente: remédio, comida, cantiga, conselho… E tem gente que até vai lá, entra dentro daquele mundo encantado
mesmo, conhece a casa e a família deles, brinca e dança nas festas que eles fazem, vai e volta quando quer. Mas
se tem gente que até namora, se casa e forma família por lá! Mas aí não é mais só procedimento, é compromisso
mesmo e bem sério, de vida e de eterno. E a primeira coisa é dizer que não sabe, que nunca nem viu.
Agora, tirar retrato deles… aí só com muito tempo e confiança firme. Um desenho que seja, uma pintura, assim
do vera mesmo e não por ouvir falar, isso é bonito de se ver e muito, muito difícil. Porque aí o procedimento já é de
lá, deles, que não podem se arriscar a mostrar a cara pra qualquer um e pra todo mundo. Tem que seguir esses
procedimentos bem direitinho, a mão obedecendo a instrução deles do maior traço ao menor. E no final, não é
que que seja assim como um espelho, é como eles querem que apareça naquela hora, daquela vez. É um povo
caprichoso, tem que respeitar.
E aí quando ficar bem velho, soprando a fumaça dum porronca na varanda da casa, a pessoa pode contar
as histórias e dar os detalhes da vida daqueles seres e daqueles mundos. Quando ninguém acreditar, quando
pensarem que o vovô tá ficando brôco, que é tudo inventado. Aí pode contar mesmo. E só quem tiver visto, um
dia, um desenho, vai poder conferir se dá umas parença.
Toinho Alves - Jornalista e Escritor
OST, 90 X 120 cm, 2019
OST, 90mX 120 cm, 2020
A Eterna Gula do Desmatamento
OST, 90 X 120 cm, 2019OST, 90 X 120 cm, 2020
OST, 90 X 120 cm, 2020
OST, 90 X 120 cm, 2018
OST, 90 X 120 cm, 2020
OST, 90 X 120 cm, 2020